Exploração musical por Santiago: um Road Trip com Luís Firmino do Acácia Maior
Crônica: Décio Barros
Luís Firmino, integrante do coletivo musical Acácia Maior, em Portugal, recentemente desfrutou de férias em Cabo Verde, na sua ilha natal, São Vicente. E esteve uns dias na cidade da Praia, em Santiago.
Sou apreciador da música tradicional tocada pelo Acácia Maior. O nosso encontro ocorreu nos estúdios da TCV (Televisão de Cabo Verde) durante sua participação no programa "Show da Manhã". Dessa conversa surgiu a ideia de uma "viagem musical" por Santiago, um Road Trip Praia/Assomada/Tarrafal.
O ponto de partida foi o bairro de Palmarejo, na Praia. Primeiro destino: São Francisco. Onde planejamos visitar a antiga residência do lendário Codé di Dona. Pelo caminho avistamos a placa do bairro "Paiol", Luís conectou-se instantaneamente à música do grupo Finaçon, na voz de Zeze di Nha Reinalda, "Paiol N`ten ki bai, Paiol ten guentis sabi..." e a música interpretada pela Nancy Vieira "Bocas di Paiol", enriquecendo a viagem com memórias sonoras.
Em São Francisco, terra de Codé di Dona, mergulhamos na riqueza musical e na importância histórica desse ícone do funaná e da cultura cabo-verdiana. Diante de sua antiga casa, compartilhamos histórias sobre suas composições clássicas, como "Febri Funaná" e "Fomi 47".
Ainda na zona de São Francisco, avançamos para o bairro de Portete, a apenas um quilômetro de distância, onde a Gruta de Lázaro escondia uma narrativa viva do século XIX que Luís descreveu como "fantástica". A Gruta de Lázaro é um túnel lávico, classificada como uma das 7 Maravilhas Naturais do município da Praia.
Ao deixar São Francisco, embarcamos pela Estrada Nacional EN1-ST-01 (liga Praia/São Domingos/Assomada/Serra da Malagueta/Tarrafal), com destino à cidade de Assomada.
A nossa próxima paragem poderia ter sido o Mercado dos Órgãos, uma das rotas gastronômicas da ilha de Santiago, onde a carne de porco assada e cachupa com carne de porco são as especialidades mais procuradas. Mas Luís, apreciador do vegetarianismo, optou por explorar outras delícias.
Seguimos, então, para Assomada, passando por Picos, conhecido pelo animado ritmo do funaná, especificamente o "Cotxi Pó", executado pelos virtuosos da família de Belo Freire. Cada curva da estrada transformava letras conhecidas em paisagens sonoras, dando vida às narrativas musicais.
Chegamos a zona de Cruz de Pico, uma praça à entrada da cidade de Assomada, com um enorme cruz, talvez para marcar a fé cristã das gentes do interior da ilha. O ponto com vista sobre a Assomada, foi palco de viagem pela memória musical, onde o vocalista da Acácia Maior cantarolou trechos de músicas populares sobre a Assomada. "Kantu n sai na krus di piku, n kori odju n odja somada. Ligria da-m korason pankada, laguas kai pingu pingu" excerto da música de Kaká Barbosa popularizada na voz do saudoso Ildo Lobo, do histórico grupo musical Os Tubarões. Permanecemos largos minutos neste spot a falar de Assomada, a cidade, suas gentes e a tradição musical tornaram-se personagens vivas em nossa narrativa.
A quarta-feira coincidiu com a famosa "Feira di Somada", uma experiência cultural que se tornou mais vívida com "Guentis di Azagua", a canção de Zeze Nha Reinalda, popularizada no LP a solo de Zeze de Nha Reinalda (em 1981,com arranjos Paulino Vieira) e também pelo grupo musical Simentera, ecoando em nossa conversa. Firmino, o turista musical, transformou-se em intérprete das paisagens descritas em verso e melodia.
A "Feira de Somada" revelou-se não apenas um mercado, mas um mergulho na autenticidade da cultura cabo-verdiana. Vestimentas típicas, cores vibrantes de produtos agrícolas e o aroma de "cusas di tera" criaram um quadro rico em tradição. Firmino, mais inclinado ao vegetarianismo, se deleitou com a variedade de produtos locais, como a abacate, melancia, laranja di tera, banana, a pensar na pausa para o lanche, mais a frente na Serra da Malagueta. Adicionando sabores autênticos à nossa viagem.
Saímos do mercado, andamos uns minutinhos a pé pelas ruas da cidade, até a Praça Central, no coração da cidade. Em conversa animada, exploramos não apenas a geografia, mas as histórias por trás das músicas, especialmente as marcantes de Norberto Tavares.
Nem mais, estávamos mesmo a frente do Museu Norberto Tavares, na Praça Central, não podíamos deixar de visitar o museu dedicado ao músico santacarinense, figura incontornável da música caboverdiana.
Dentro do museu, os olhos de Luís Firmino brilhavam e em cada fotografia apreciada sai um largo sorriso na cara. Provavelmente, seria dos vestuários dos músicos nos anos 70 e 80. No museu, tivemos a falar de uma das músicas marcantes de genial Norberto Tavares - "Jornada de um Badio", onde ele descreve vários localidades do interior da ilha de Santiago. E um destes locais referidos é a ribeira da Boa Entrada. "...na ribera Boa Entrada, N´encontra ku um encantada, N´botal mó na sulada, É rabidam ku um bafata...".
O trajeto tinha necessariamente de continuar por Boa Entrada, a ribeira do imponente "Pé di Polon", uma força da natureza, uma árvore centenária, a maior de Cabo Verde. Fica à um quilometro e meio do centro da cidade. As músicas, mais uma vez, serviram como guia, enquanto Firmino descrevia o local com base na sua experiências sonoras, num local que visita agora pela primeira vez presencialmente. O encontro com jovens locais trouxe à tona histórias de artistas nascidos na região, como Kino Cabral e de familiares de Dino D´Santiago.
A viagem seguiu por Santa Catarina adentro, sempre pela estrada EN1-ST-01, surgiu uma placa indicativa a apontar a direção para a localidade de Ribeirão Manuel. Luís sugeriu para visitarmos o sitio que tanto ouviu na música de Orlando Pantera, a Revolta de Riberon Manel, "Homi faca, mudjer matchado...". Mas Ribeirão Manuel fica para um outro dia, numa próxima aventura. Luís fica a promessa!
Próxima paragem Achada Falcão, onde visitamos a casa onde Amílcar Cabral viveu durante parte da infância, em Cabo Verde. Falamos de Cabral, sobretudo da sua dimensão cultural. Tudo que diz respeito a um Herói Nacional como Amílcar Cabral, interessa a todos cabo-verdianos.
A cultura, tanto musical quanto histórica, tornou-se a linha condutora de nossa viagem. O relato das experiências de Luís Firmino, desde os palcos em Lisboa, o single "Catá Bórre em parceria com os Cachupa Piscadélica, até a produção do recente EP "Cimbron Celeste" da Acácia Maior, preenchia os intervalos entre destinos.
A tarde se desenrolava, e a fome nos impulsionava em direção à Serra da Malagueta. Nesta altura faltava pouco menos de 15 minutos para às três horas da tarde, e fome já apertava. Resolvemos apertar a velocidade para o almoço/lanche no alto da Serra Malagueta, a uns 10 quilômetros ou mais da nossa posição. O maciço montanhoso da Serra da Malagueta ocupava toda a linha do horizonte a nossa frente, numa altitude superior a mil metros.
Quanto mais subíamos a serra, mais a vista sobre Santa Catarina fica deslumbrante. No alto da Serra da Malagueta, fomos a uma praça, no meio de eucaliptos e pinheiros. Era a hora de "matar a fome", no alto da serra, montamos uma mesa repleta de produtos adquiridos na Feira di Somada. E conversa mantinha a volta da música. Firmino compartilhou a sua vida estudantil em Algarve, em Portugal, onde se formou em Engenharia Civil, suas paixões musicais e a liberdade de levar a música tradicional às ruas de Lisboa. Também falamos das parcerias musicais no EP "Cimbron Celeste" do Acácia Maior, um coletivo de músicos, fundado por Luis Firmino e Henrique Silva, em Portugal. O EP "Cimbron Celeste" está na fase de divulgação e promoção.
A tarde já ía a meio, a descida da Serra da Malagueta nos levou a Tarrafal, paragem em Chão Bom, onde visitamos ex-Campo de Concentração do Tarrafal, local que alberga o Museu da Resistência, e mergulhamos nas memórias sombrias da história de Cabo Verde. O ex-Campo de Concentração de Tarrafal, também designado Campo da Morte Lenta, funcionou durante as duas fases (de 1936 a 1954 e de 1961 a 1974) recebeu centenas de presos políticos, oriundos de Portugal, Angola, Guiné-Bissau e também de Cabo Verde. O Museu da Resistência é o mais visitado de Cabo Verde.
Percorremos, quase, todos os pavilhões do antigo estabelecimento prisional e "sentimos" os horrores que ali passaram os presos. No Campo de Concentração de Tarrafal, até desejo de emigração foi ironicamente utilizada pelos presos - a "Holandinha", uma pequeníssima sala dentro de uma sala, para castigos, tipo "solitária". O nome Holandinha vem do facto, na altura, para este país europeu partiam muitos cabo-verdianos em busca do sonho de uma vida melhor. Só aqui o sentido é invertido.
Saindo de um ambiente pesado, angustiante e triste, que é o ex-Campo de Concentração, seguimos para a praia de Tarrafal, num percurso de cerca de dois quilômetros. Apreciar a vista da praia, é uma sensação de passagem de 8 para 80, da prisão para paraíso.
Da prisão para a praia, a transição foi simbólica, representando a resiliência do povo cabo-verdiano. A praia de Tarrafal, com suas águas límpidas e areia dourada, encerrou o dia com um espetáculo visual. Firmino cantava trechos de músicas que mencionavam o local, mergulhando ainda mais fundo nas histórias do arquipélago.
A praia de Tarrafal, que na verdade são duas praias, a maior conhecido por Mar di Riba e a mais pequena de Mar di Baxu ou Mar di Presidente. E diga-se de passagem, Mar di Presidente porque era a praia preferida do primeiro Presidente da República de Cabo Verde, Aristides Pereira (17 Nov 1923 - 22 Set 2011), quando deslocava para o norte da ilha de Santiago. E criava-se um cinturão de segurança, e o então Presidente apreciava, em exclusivo, a fantástica prainha de areia dourado e água azul turquesa límpida.
A praia de Tarrafal tem muito para contar e muito para apreciar e engraçado é que quanto mais se visita o lugar, maior é a vontade de o revisitar.
A viagem continuou pela Ribeira da Prata e a Piscina Natural de Cuba, revelando a diversidade turística de Tarrafal. Situada à seis quilómetros do centro da cidade, a praia de Ribeira da Prata é bela! A paisagem vista do alto é espetacular, a praia marcado por três cores, o azul do mar, a areia negra e a grande mancha verde da vegetação que ladeia a praia.
A Piscina Natural de Cuba é jóia "descoberta" recentemente com a pandemia, onde as praias de mar foram interditas, o sitio viralizou nas redes sociais. É um lugar fantástico. Com muita pena, na viagem de hoje, chegamos a piscina no finalzinho da tarde, não foi possivel apreciar toda a beleza cênica do local. Já agora, digo por experiência própria, a melhor altura de visitar Piscina Natural de Cuba e apreciar todo o seu esplendor é um dia ensolarado entre às 11 e às 15 horas, em que os raios solares penetram na água, e toda a transparência da água na "piscina" é vitamina para os olhos e para a alma.
O sol se pôs, escondendo lentamente atrás da linha de horizonte do mar. Daqui é possivel ver a silhueta do majestoso vulcão da ilha do Fogo, no horizonte. Mas "not today", havia muita poeira do deserto do Sahara, no ar, a visibilidade não era suficiente para ver a ilha do Fogo.
Bom hora de regressar à cidade da Praia, atravessando a cadeia montanhosa pelas estradas curvilíneas que passa pela localidade de Figueira das Naus até a Estrada Nacional EN1-ST-01.
A viagem de regresso à Praia, sempre na estrada EN1-ST-01, sentido norte/sul, ainda reserva um paragem obrigatória, em São Domingos, na terra dos músicos conceituados como Ano Nobu (falecido em 2004) tocava vários instrumentos como o violão, bandolim, cavaquinho, gaita de boca, violino, piano e cimboa. Foi autor (composição e letra) de mais de 500 músicas de gêneros como mornas, coladeiras, funanás, batuques e valsas. Sim, a paragem obrigatória, tem a ver com a gastronomia, o famoso e delicioso pastel de milho de São Domingos.
Encerrando um Road Trip que foi mais do que uma exploração geográfica: foi uma odisseia musical e cultural pelos recantos de Santiago, guiada pelas histórias e melodias, que Luís Firmino conserva na sua memória musical de Cabo Verde.
O Road Trip valeu a pena, e com a mais-valia de uma boa companhia, que partilhamos a paixão de apreciar as coisas simples da vida, das gentes da nossa terra, o dilema e as peripécias da emigração e morabeza.