Emigração em tempos de Covid - um olhar de Fátima Fernandes
Um banho no mar da Prainha logo pela manhã. Com o calor que se fazia sentir, um sumo de pinha fresco no restaurante “Linha d´Água”, logo em frente ao mar, soube-me pela vida. Um saltinho até Plateau à hora de almoço, onde o menu no “Quintal da Música”, cheirava a pátria – cachupa com linguiça e ovo estrelado, acompanhado por um sumo de calabaceira. E como esquecer a gelataria “Ártica”, em Achada Santo António? O gelado de tamarindo é um verdadeiro orgasmo gastronómico. Uma tarde em modo tertúlia em São Domingos, não dispensa umas dentadas perseverantes e prazerosas nos pastéis de milho, já uma marca gastronómica do concelho, no interior da ilha de Santiago. Para rematar tudo, um entardecer em Cruz de Papa, no restaurante “Nice Kriola”. Um lugar singular, sobre o qual poderia escrever uma polografia poética. Uma vista indiscritível, que abraça a cidade e dá-nos a sensação de liberdade absoluta. Até então, o meu cantinho de eleição no mundo! Era noite de morna e eu rodeada das gentes da minha terra que um dia causaram-me alumbramento.
E depois… um “até já”, que revelou-se mais tarde ter sido apenas uma metáfora do adeus. Sim, porque o “até já” não dá ao vento o tempo de trazer saudades e melancolias. E é isto. As singularidades e os encantos da minha terra! O meu Cabo-Verde. Hoje, a vida reservou-nos um recomeço e um renascer da alma – a possibilidade de voltarmos à viagem que já não fazemos, de nos perdermos na memória carregada de ficheiros para reencontrarmos os sabores da nossa terra e a vida que nos define.
Lembro-me de quando era adolescente. Na época, a minha mãe já vivia em Portugal. Uma vez, numa carta que me escrevera, disse: “Minha filha, a primavera vai e volta sempre, mas a mocidade não volta mais”. Estranhamente hoje, esta frase fez-me lembrar os tempos em que vivemos. Obviamente não faço alusão a senescência, mas sim a um tempo que se foi, a um modo de vida que, num abrir e fechar de olhos, nos acordou para uma realidade incógnita – A nossa nova vida na era do inexorável Covid-19. Há cerca de um ano e meio reaprendemos, devido à persistência deste vírus, um ser e um estar inabitual no mundo.
Hoje, num sábado à tarde, saí para ir ao supermercado. Ao passar pela porta principal do prédio, estive a observar a rua onde moro há quase 5 anos, no coração de Paris (França). Para percorre-la de um lado ao outro, são cerca de 20 minutos a pé e, a cada dez passos, encontra-se um restaurante ou um bar. Outrora, ao fim-de-semana, mal se podia andar, tanta era a multidão que entupia a passagem do início ao fim deste mesmo arruamento. Se neste instante o meu sentido de responsabilidade agradece por poder enumerar as pessoas que por aqui passam, já o meu coração sente a nostalgia de um tempo que se desvaneceu faz tempo. Um antes e um depois da minha rua e das ruas do mundo inteiro.
É o retrato dos tempos atuais. Não há abraços. Há silêncios e olhares por cima das máscaras. Os sonhos demoram-se mais a realizar e perdemos a ilusão de que podemos decidir onde estaremos no mês ou mesmo na semana seguinte. Se dantes bastava-nos o passaporte para fazer uma viagem, hoje os acessórios multiplicaram-se. Entre os testes PCR´s, as inúmeras atestações e o motivo das deslocações, só nos resta adiar os reencontros. E tem sido muito disto! As saudades que já não matamos, agora matam-nos. Saudades do que é nosso. As nossas cores, a nossa identidade e a nossa morabeza.
Quando somos emigrantes, a nossa resiliência para triunfar os desafios que a emigração nos impõe vem, em parte, da esperança no retorno breve à nossa terra. E quando finalmente conseguimos, é a ocasião para lavarmos a alma e tomarmos um banho de coragem para o regresso à “terra emprestada”, que nos acolhe a nós e aos nossos sonhos. E o que fazer quando até isso nos é retirado? “Por vezes, a melhor coisa a fazer é esperar que o horizonte se esclareça.” Até lá, na miragem dos meus sonhos, brinquei hoje pela manhã nas ondas do mar de São Francisco e em seguida cheguei a tempo de regalar-me com um prato elaborado de atum fresco na Cidade Velha - a nossa cidade património da humanidade. E como já dizia o artista cabo-verdiano Beto Dias, “até um dia se Deus quiser”.
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Crônica de Fátima Fernandes<br>
Crioula, residente em Paris, França @fatima__fernandes_ no Instagram